Malandragem para manés

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Parte II: Os Novos Malandros

 

“Mas o malandro para valer, não espalha,
aposentou a navalha, tem mulher e filho e tralha e tal.
Dizem as más línguas que ele até trabalha,
Mora lá longe chacoalha, no trem da central”

Chico Buarque – Homenagem ao Malandro

 

Em janeiro de 2009, enquanto fazia um curso de férias de verão (verão no Brasil, inverno na Europa) na Itália, a maior parte dos meus colegas de turma era norte-americana ou pelo menos parte norte-americana (uma nipo-americana e uma uruguaia há muito radicada nos EUA eram o que havia de mais exótico, depois de mim, claro). Todas as noites, estrangeiros de todas as turmas escola se reuniam para excursionar pelos bares da cidade praiana (e, logo, vazia na época) de Salerno. Poucos membros da turma de nível avançado, minha turma, no entanto, frequentavam a vida noturna todos os dias. Com duas exceções: Angela e eu. Um dia enquanto combinava o trajeto da noite seguinte com pessoal de outra turma, Angela me questionou: como você consegue sair todas as noites e ainda fazer todas as tarefas, todos os dias? E você ainda tem aulas individuais a tarde…

 

A resposta à pergunta de minha cara Angela era elementar. Ela simplesmente não havia notado um certo padrão lógico, que logo a expliquei: Angela, darlin’, você não precisa fazer todos os exercícios da tarefa. A professora faz correção oral certo? Todos sentam sempre nos mesmos lugares certo? Ela sempre começa a correção sempre pela mesma pessoa, certo? Logo, eu conto a rodada toda e faço somente os que caírem na minha vez. Angela me desferiu um olhar de sincera admiração e chamou aquilo de inteligência e criatividade. Ao que eu a corrigi: “this is malandragem”. O que parecia um ato de extrema observação para Angela, era algo natural para mim. Logo, ela também passou a aplicar a tal da malandragem. Embora não seja totalmente moral, meu ato, em momento algum pode ser considerado enganoso, desonesto ou prejudicial (exceto, talvez comigo mesmo). Em momento algum, eu considerei que realmente enganava a professora. Pois, eu, já professor na época, sabia que enganar o professor, embora sempre faça o aluno se sentir esperto, não faz a menor diferença para o docente. No caso da minha docente, sua aula continuava de acordo com o planejamento, e todos os seus alunos, até os culturalmente menos disciplinados, pareciam estar motivados e seguindo suas instruções. Também não estava prejudicando a mim mesmo, uma vez que acreditava sinceramente que a carga de exercícios era excessivamente grande, ainda mais para mim, que já havia estudado o idioma anteriormente, estava imerso em um ambiente no qual apenas ele era falado e ainda assistia a aulas individuais, onde podia facilmente eliminar dúvidas específicas, no período da tarde. Logo, eu fazia sim a carga de exercícios necessária. Necessária às minhas peculiaridades e a situação no qual estava inserido naquele momento. Talvez, eu tenha prejudicado Angela, que não assistia aulas individuais a tarde, mas isso é outra história. Em nenhum momento, eu a obriguei, recomendei ou a aconselhei a seguir meus métodos de estudo.

 

Enfim, tudo isso foi para dizer que a malandragem, esse pequeno contornar do problema por meio da criatividade, raciocínio ou lábia é algo comum a nós brasileiros. Está embrenhando em nossa cultura, nossas atitudes, em nossa própria visão de nós mesmos. Nos últimos anos com a popularização de uma interpretação exagerada de Webber por parte da imprensa, formadores de opinião e da classe média, a malandragem e a lei de Gerson(assunto para o próximo post) parecem ser os grandes culpados pela nossa desonestidade e subdesenvolvimento. O que para mim é um grande exagero.

 

Apesar da era do malandro de chapéu e terno branco ter chegado ao fim (e de agora o malandro precisar trabalhar e chacoalhar no trem da central) a malandragem ainda existe entre nós. Mesmo não mais existindo mais em corpo, alma, terno branco e chapéu, vira e mexe, ela se manifesta, aparece em pequenos atos cotidianos, atos esse que, em São Paulo, chamamos de migué. Dar um migué significa, portanto, fazer uma ação à malandra. Acredito sim que podemos como um povo tirar proveito dos migués para promover o desenvolvimento. Afinal, ele nasce do mesmo lugar, e anda de mãos dadas, com a nossa capacidade de improviso (com a nossa bossa, nossa ginga) tão admirada no futebol e na música. Só falta, em sociedade, sabermos como adaptar essa característica de forma benéfica, como já fazemos na música e no futebol. Podemos até mesmo usar essas técnicas para combater a corrupção. Quem sabe, a solução do problema não esteja em deixar de ser malandros, e sim em deixar de ser manés, principalmente quando o assunto em questão for política ou administração pública.

 

A malandragem deu um tempo. Mas, ainda não morreu. Está mocozada. Cabe a nós mantê-la viva e louvá-la como parte de nossa cultura e origem de nossa capacidade de improviso, nossa fluidez e nossa ginga. Cabe a nós, ainda, evitar as depravações da malandragem, evitar que ela se torne corrupção, golpe, estelionato, etc. E a melhor forma de fazer isso não é se tornar mané ou cintura dura, e sim nos tornarmos (ou continuarmos a ser) malandros de responsa.

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